Brasil 2 x 0 Costa Rica, ou a armadilha da marca Neimar

Futebol é só futebol e a seleção já não é a pátria de chuteiras, por isso falar do jogo de hoje deveria ser só falar de futebol, mas não é possível, porque a seleção tem uma personagem que concentra atenções: Neymar. Ou Neymar Jr., que é o seu nome oficial há algum tempo, e merece ser citado, porque Neymar, sem Jr., o pai, tem papel importante nessa história. Em vez de falar da seleção, o que hoje significaria falar de Coutinho, acabamos sempre falando de Neymar, como nunca aconteceu na história da seleção, nem mesmo quando ela tinha Pelé, o melhor jogador de todos os tempos, e era de fato a pátria de chuteiras. Caímos sempre na armadilha Neymar — que daqui pra frente chamarei de Neimar, como no título, porque esse negócio de usar y em vez de i é coisa do começo do século passado, anterior à lei ortográfica de 1943, e um grave erro dos jornalistas, como nos mostra Marcos de Castro em A imprensa e o caos na ortografia.

Vou deixar de lado o Jr. (outra coisa ridícula: em português, ou brasileiro, é filho, não júnior) e esquecer o pai, que só apareceu na história por causa do filho. Neimar é o jogador, ponto final; o outro é o pai dele, que a gente nem precisava saber o nome.

Neimar é, provavelmente, um dos grandes jogadores de futebol de todos os tempos. Digo “provavelmente” porque ainda tenho dúvida. Na idade que ele tem (26 anos), os grandes craques do futebol já estavam definidos, não havia dúvidas sobre eles. Sobre Neimar as dúvidas continuam, e não é só porque ele, ao contrário de Kaká, Ronaldinho, Rivaldo, Ronaldo e Romário, nunca foi eleito o melhor do mundo pela Fifa, nem ganhou uma Copa do Mundo. É que Neimar em campo não é sinônimo de vitória ou título, mas de imprevisibilidade. Ele não amadurece, nunca chega a ser o que a gente espera que seja. Talvez, penso agora, esta seja sua característica particular, a sua peculiaridade, a sua idiossincrasia: o aquariano Neimar nunca vai ser parecido com outro jogador, não será colocado numa cesta, será único.

O que não é necessariamente uma qualidade. Depende de como vemos o futebol, do que queremos, do que valorizamos. Para mim, na maior parte das vezes é um defeito. Em relação a Neimar não há indiferença: há quem goste dele e quem não goste. E eu — digo logo — estou entre os que não gostam.

O que estou escrevendo, porém, não é uma opinião apaixonada. Para além do meu gosto, vou explicar com argumentos por que não gosto dele. Caio na armadilha Neimar, mas é necessário cair nela para explicar o que vejo.

Enquanto escrevo, escuto vuvuzelas soando e gritos de torcedores nas ruas. Na tevê, comentaristas falam do jogo. No canal que costumo ver, a primeira tarja na tela trazia o nome Neimar. Quando o jogo Brasil 2 x 0 Costa Rica acabou, as câmaras acompanharam Neimar; ele se ajoelhou no gramado, cobriu o rosto com as mãos e chorou copiosamente (lágrimas de crocodilo?) durante um tempo que pareceu infinito. A câmara o focalizava de cima, em close, rodava em torno dele. Um espetáculo que correu o mundo. Neimar é um pop star, uma estrela mundial, uma celebridade; não é apenas um jogador de futebol, é uma grife, uma marca. Como sugeri antes, um estilo, um jeito de ser, único.

Esta é a minha tese. E é também, entendo agora, o motivo pelo qual não gosto dele. Neimar é o que é porque criou uma identidade singular num universo de milhares de jogadores. Ele cultiva isso e vai ser sempre assim. O estilo Neimar significa ser sempre o centro das atenções, esta é a questão. A marca Neimar exige isso, esse é seu estilo, para o bem ou para o mal.

Hoje, por pouco, a marca Neimar não deu certo. Quando tudo estava indo por água abaixo, o juiz colaborou para reverter essa situação: deixou o jogo correr além dos seis minutos de acréscimo e Neimar fez um gol. O juiz, que faz parte do grande negócio do futebol, e o acaso, que faz parte do esporte futebol, colaboraram com a grife Neimar.

Até então, tudo tinha dado errado para ele. O juiz não marcava falta quando ele caía, o AV (árbitro de vídeo) reverteu um pênalti que ele simulou sofrer, ele ganhou cartão amarelo por indisciplina e Filipe Coutinho (Philippe também é demais, não é não?) decidiu a partida, mais uma vez. Neimar estava até cabisbaixo, sorumbático, mesmo depois do primeiro gol, que saiu numa jogada da qual ele não participou. Não fosse o acréscimo além do acréscimo que o juiz deu, o jogo terminaria 1 a 0 e a estrela inegável seria Filipe Coutinho. O salvador da pátria, condição que, somada ao gol da primeira partida, jogaria os holofotes no atacante do Barcelona e estabeleceria para todos uma comparação incômoda com o filho do Neimar — um, praticando futebol sênior, outro, futebol júnior. Não seria bom para a marca. O jogo teria um mocinho e um vilão.

O juiz, o acaso, uma boa jogada dos seus companheiros e a competência que Neimar inegavelmente tem deram a ele, no entanto, a chance de pelo menos ficar ao lado de Filipe: um gol para cada um. Antes, a bela firula inútil na linha de fundo. O juiz deixou o acréscimo passar dos seis minutos e Neimar finalizou uma jogada de Casemiro e Douglas Costa, fez um gol que pode ser decisivo no caso de desempate por saldo de gols.

Para a marca Neimar, no entanto, era pouco. Soado o apito final, ajoelhado, ela/ele cobriu o rosto e chorou, lágrimas de crocodilo ou não. Como um grande ator, sabendo que estava sob olhares de dezenas de câmaras, Neimar roubou a cena, tornou-se o centro das atenções, como quase sempre, como exige a marca. Quando não é assim, ele vai embora, como foi embora do Barcelona. E, ao sair, se torna novamente o centro das atenções. E ganha mais dinheiro. A marca Neimar é sobretudo uma máquina de ganhar dinheiro.

Neimar talvez seja o primeiro jogador de futebol que é uma marca, não um conteúdo, pelo menos um conteúdo futebolístico. Este importa, é claro, o que significa fazer gols importantes e jogadas antológicas, de vez em quando, mas não é o principal. O principal da marca Neimar é ser Neimar, é não ser esquecida, é ser o centro das atenções. É assim que ele — e Neimar pai, o dono da marca, o controlador da marca, o criador da marca — ganha dinheiro. No Barcelona, um time que preza o jogo coletivo, no qual atua pelo menos um jogador reconhecidamente melhor do que ele, Neimar não era o centro das atenções, o que prejudicava o crescimento da marca.

Ao final do jogo de hoje, certamente a estrela de primeira grandeza seria Filipe Coutinho; Neimar seria alvo de críticas. A seleção teria vencido sem participação do Neimar e graças a Coutinho. O gol salvador e a admirável representação de Neimar mudaram isso. Depois de alguns minutos normais, durante os quais os outros integrantes da equipe brasileira se confraternizavam pelo resultado, alguns perceberam a atitude de Neimar e a câmara em torno dele, e correram para consolá-lo. Logo ele foi cercado de tapinhas e abraços. E voltou a ser o centro de atenções, não apenas da câmara, mas dos colegas, da seleção, da imprensa.

Jornalistas experientes com certeza perceberam e não caíram na armadilha. Para os demais, porém, Neimar conseguiu reverter o quadro negativo com maestria. Agora há pouco, durante outro jogo, vi um torcedor entrevistado exaltá-lo.

Não conheço a história do Neymar, não sei se tem irmãos ou se é filho único, se é caçula ou o filho mais velho, mas imagino que desde que tocou numa bola pela primeira vez e demonstrou habilidade tornou-se o centro de atenções da família, da mãe, e especialmente do pai, que não deve ter colocado seu nome no filho à toa. Jr. projeta o pai, tornou Neimar — seu nome, com o exótico y — um nome afamado mundialmente, uma das maiores marcas dos nossos dias, bilionário (trilionário? Se ainda não é, será…), porque vivemos num tempo em que a fama transforma uma marca em dinheiro, muito dinheiro. Jr. supera muitíssimo o que Neimar um dia possa ter esperado do filho ao qual deu seu nome.

Neimar é o Michael Jackson do futebol. Eu diria que até hoje Neymar Jr. nunca foi ele mesmo. Jr. é a projeção de Neymar. Acrescentar Jr. no nome do filho já famoso foi uma jogada habilidosa que o projetou. Desde então todos no mundo inteiro sabem o que nunca tinha lhes interessado e continua não interessando: o nome do pai do Neimar. Neimar pai, me parece óbvio, é o criador, em todos os sentidos, do filho: do indivíduo, do nome, do jogador e da marca. Pai é o sujeito que põe limites no filho, e Neimar não tem limites. Seu pai o criou para ser o que é: uma marca que significa o jogador sem limites. Que deve ser sempre o centro das atenções e provocar polêmica sempre: sobre se será o melhor, se já é o melhor, se agiu bem, seu agiu mal, se foi atingido, se não foi, se é caçado ou se provoca, se seu cabelo parece espaguete ou é estiloso, se representa o verdadeiro futebol brasileiro ou é apenas um individualista, se deveria ter feito o que fez ou não, se é infantil ou amadureceu, se é vítima ou vilão.

Até agora não falei do jogo Brasil 2 x 0 Costa Rica, e não vou falar. A armadilha da marca Neimar impede que a gente fale do jogo, porque ele é sempre o centro das atenções. E é por isso que não gosto dele, porque gosto de futebol, não gosto de marcas, não gosto de celebridades, não gosto de bilionários, uma coisa indecente de se ser neste mundo tão desigual, neste país que desmorona. Como disse no começo, a seleção não é a pátria de chuteiras e futebol é só futebol.

Direi apenas que uma das coisas boas do jogo de hoje foi a camisa azul, muito bonita, e que deveria substituir a camisa canarinho, manchada pelo uso nas manifestações golpistas e pela corrupção da cbf. Aliás, nunca entendi porque o amarelo, que não é a cor principal da bandeira brasileira, prevaleceu na camisa da Seleção, quando ela merecia ser chamada assim, com inicial maiúscula. Mas isso é outra conversa.

PS: Escrevi este texto em 22 de junho. Terminada a Copa, meu ponto de vista sobre Neimar vai se confirmando, como nesta matéria do El País de 31 de julho: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07/30/deportes/1532978552_448477.html.

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