Democracia em Vertigem ou A Tragédia Brasileira

democracia em vertigem

O documentário Democracia em Vertigem, da Petra Costa, mostra que o entendimento do que aconteceu no Brasil nos últimos anos é amplo. Quem pensa sabe o que aconteceu. O fato de eu ter lido muito a partir de 2006 me possibilitou o entendimento enquanto as coisas aconteciam. Nunca fui enganado pelo golpe, embora nunca tenha militado nas organizações golpeadas. Marx errou em muitas coisas – e a leitura do livro O Homem que Amava os Cachorros, do cubano Leonardo Padura, que estou lendo, mostra a extensão e a profundidade trágica do estrago que fez na humanidade uma corrente política herdeira do marxismo, a mais forte e presente ainda hoje, o stalinismo –, mas não errou na luta de classes. Petra, que tem a luta de classes na sua formação, como conta no filme (de um lado a empreiteira do avô, do outro a militância dos pais contra a ditadura), viu isso com clareza. São duas obras sobre dois períodos trágicos para os humanos. Como contraponto, a palestra e o livro A Refundação do Brasil, do professor Luís Gonzaga de Sousa Lima.

O que os novos vazamentos do The Intercept deste fim de semana mostram é como a própria larva jato foi manipulada, assim como a população na rua. Batmoro e Robignol são as figuras centrais da transformação da larva jato num movimento político golpista contra Lula e o PT, para levar ao poder a extrema direita.

Os vazamentos publicados pelo TIB confirmam e comprovam o que já sabíamos: que a larva jato é uma operação política. Ela foi o motor do golpe de 2016, que rompeu com a conciliação de classes em vigor no Brasil a partir de 1985, chamada inicialmente de Nova República e que possibilitou o fim da ditadura militar (1964-1985). É uma operação política de origem americana e expressa um novo modelo de intervenção do governo dos EUA na América Latina. Só falta à vazajato revelar as conexões dos juízes e procuradores com o governo americano, o que certamente existe e provavelmente será revelado, porque não é possível que o golpe tenha sido gestado nas cabeças de Batmoro e Robignol, muito menos que tenha sido fruto do acaso.

A Nova República foi um período interessante na história brasileira, o mais longo período democrático e constitucional. Foi sobretudo uma experiência de construção de uma ordem democrática no Brasil. Para definir que ordem democrática foi essa (e é ainda, porque o golpe não a destruiu completamente ainda, embora venha fazendo isso aceleradamente), é preciso analisar mais detalhadamente seus elementos, que combinam instituições que remontam à Revolução de 1930, outras que foram criadas pela ditadura e não foram extintas e por fim instituições da Constituição de 1988, parte das quais foi implantada ou se tentou implantar e parte das quais nunca saiu do papel.

Por ser uma combinação de instituições de períodos diversos, a democracia da Nova República misturou elementos fascistas, elementos do New Deal, elementos social-democráticos e ainda elementos liberais. Não vou aprofundar nessa análise, apenas mencionar essa característica fundamental do período, que foi basicamente um período de construção de uma ordem democrática capitalista no Brasil, interrompido pelo golpe de 2016.

O golpe de 2016 não foi só um impeachment, como o do ex-presidente Collor, por exemplo, igualmente ilegal, mas que não representou uma ruptura, só a mudança de governo – Itamar e FHC continuaram políticas neoliberais de Collor e atacaram mais uma vez o que era então considerado o principal problema brasileiro, a inflação.

O que aconteceu em 2016 foi um golpe, uma ruptura, que iniciou a implantação de um novo Estado, uma nova ordem institucional, aprofundada com a eleição do presidente capitão. Considerando que a larva jato é o motor do golpe e que ela foi planejada pelo governo dos EUA, pode-se supor que está sendo experimentado no Brasil um novo modelo de dominação do império americano na América Latina, suposição confirmada pela expansão da larva jato por outras nações sul-americanas, sem falar no cerco à Venezuela.

O golpe de 2016, primeiro com o presidente traidor e agora com o presidente militar, pratica uma política de terra arrasada que pretende deixar o Brasil inteiramente entregue ao capital financeiro internacional. Para isso destrói tudo que existia, criando condições para o capital agir livremente. As forças que poderiam reagir a isso, a quem isso não interessa – a saber: esquerdas de todos os tipos, nacionalistas, trabalhadores, camponeses, classes médias não lúmpem, pequenos empresários, artistas, intelectuais, cientistas e até mesmo forças armadas, burocratas e políticos –, não conseguem reagir, não se articulam, não se unem, não organizam um projeto alternativo.

O projeto que foi golpeado é o projeto desenvolvimentista, que vigorou no Brasil a partir de 1930 e atravessou o Estado Novo, a democracia populista, a ditadura militar e a Nova República. O que está sendo feito agora, a partir do golpe de 2016, é uma coisa totalmente nova, que só tem semelhança com a República Velha, quando, no entanto, o Brasil era uma nação agrícola e rural, com 30 milhões de habitantes, dois terços dos quais morando no campo.

A outra coisa relevante a dizer sobre o golpe é que o solo fértil no qual ele cresceu foi o empoderamento do PT. O crescimento do PT despertou ódios, invejas, competições, terrores e uma série de sentimentos maléficos que estavam incubados e explodiram a partir de 2014. Nas manifestações das massas da lúmpem classe média, mas também em manifestações de políticos, de reacionários de todos os tipos, de machistas, de empresários, de latifundiários, de brancos etc. Vou falar do assunto em linhas gerais, sem me aprofundar.

Em primeiro lugar, é fácil entender por que o PT se tornou tão poderoso. Ele foi (e ainda é) o primeiro partido da história do Brasil a nascer de baixo para cima, com raízes populares. Distingue-se do PTB, um partido popular criado pelo então ditador Getúlio Vargas, e dos partidos comunistas, que nunca foram populares, exceto, em parte na eleição de 1946. Distingue-se ainda mais dos outros partidos políticos, todos de elites, dominados por políticos e empresários, oligarquias rurais e urbanas, ou no máximo com participação de classes médias, como a UDN e o PSDB, que, apesar de seus nomes democráticos, estes, nunca vacilaram em apoiar golpes contra a democracia.

O PT cresceu durante vinte anos participando do jogo democrático, capacitando-se para ele, conquistando governos municipais e estaduais, praticando a administração pública, aprendendo a governar e a fazer política no Estado capitalista, até chegar ao poder nacional em 2002. Para não sair mais, ou permanecer durante muito tempo, como de fato ficou até o golpe de 2016. Por quê? Porque, além de ser o único partido nacional com raízes populares, ele contava com quadros para a administração pública e as melhores cabeças do país, e foi capaz de governar e implantar políticas melhores do que os demais partidos e governos anteriores. O PT foi um sucesso e com isso foi reeleito em mais três eleições.

Não só isso, o PT tinha muito mais: tinha Lula, o maior líder político da nossa época e um dos maiores de toda a história nacional, que, presidente, se projetou internacionalmente a ponto de ser chamado de “o cara”, “o político mais popular do planeta”, porque ninguém menos que o presidente do império americano. Somou a tudo isso a habilidade política de Lula que, além de conquistar as massas com seu carisma, conquistou os políticos conservadores numa aliança que lhe permitiu governar e superar o terremoto do chamado “mensalão”, a primeira tentativa de golpe contra o governo petista. Lula foi reeleito e elegeu um poste para sucedê-lo. A oposição, comandada pelo PSDB, partido do ex-presidente anterior, também por dois mandatos, e dos candidatos que disputaram e foram derrotados no segundo turno nas quatro eleições seguidas, ficou desesperada. Quando perdeu a quarta eleição seguida, o candidato derrotado deflagrou o movimento do golpe.

Uma das qualidades do filme da Petra Costa é mostrar em imagens esse esmagamento da oposição pelo sucesso do PT e do Lula. Como na cena da ira de Aécio Neves ao perder a eleição e na cena do desconforto de Temer, ao lado de Lula, dona Marisa e Dilma, na primeira posse, menosprezado, insignificante, medíocre, dando a volta por trás dos três para aparecer na foto, com um sorriso dissimulado nos lábios.

Basicamente é esse o terreno fértil do golpe, que não interessa a nenhum político ou partido democrático, nem aos que perdem nem aos que ganham, capaz de transformar os primeiros em golpistas e os segundos em prepotentes. Lula e o PT foram capazes de ganhar uma eleição que deveriam perder e ainda ganhar mais uma vez. O projeto de perpetuação do PT no poder era real, considerando que Lula poderia voltar em 2018 para mais dois mandatos, e assim sucessivamente.

O pecado capital da oposição tucana — mesmo advertida pessoal e publicamente às vésperas da eleição de 2018 por um dos seus mentores políticos, o cientista político americano Steven Levitsky — foi não respeitar a vontade popular. O pecado capital do PT foi não entender que a democracia contemporânea precisa de alternância no poder, que ela não é só o governo de um partido, mesmo que escolhido pela maioria, mas também um pacto entre dois ou mais partidos que se alternam no poder.

É assim que se sustenta a democracia americana, uma das poucas tão longevas quanto o capitalismo. É saudável um ex-presidente se afastar da disputa partidária e se transformar em um representante da nação, uma espécie de superembaixador. É saudável um candidato a presidente ser o político mais forte de um partido na sua ascensão e durante o governo, mas não ser nem se tornar o dono do partido. Isso é uma sabedoria que ultrapassa a simples prática política.

Lula, de certa forma, repetiu Getúlio, que voltou, como prometeu, “líder de massas”, mas foi atacado pelo terror que causava aos seus oponentes. Os oponentes, naquela época como agora, são os bandidos, porque usam de métodos baixos e desrespeitam a vontade popular, mas a situação não é santa e peita uma situação que depois não consegue bancar, a não ser como governos ditatoriais, que nem Getúlio, em 1954, nem Dilma, em 2016, quiseram tentar. Tanto Getúlio quanto Lula podiam ter se recolhido a um papel menor, privado, e de superembaixador nacional, como os ex-presidentes americanos, já que não voltariam a ter estatura tão elevada quanto tiveram antes, no poder, mas não tiveram sabedoria nem humildade para isso.

O que Lula está vendo, na prisão, mais do que sua biografia ser manchada e seu profundo sofrimento pessoal, que poderia ter evitado, é sua imensa obra de desenvolvimento do Brasil, que o elevou à popularidade de 87% dos brasileiros em 2010, ser destruída. O que não daria hoje qualquer petista de carteirinha por ter enfrentado quatro anos de um governo aecista em vez de um governo golpista, e uma eleição normal em 2018, à custa de perde em 2014? É o povo quem perde nas disputas dos políticos pelo poder, e perde mais quanto mais tinha ganhado antes. Nunca perdemos tanto quanto perdemos nos últimos cinco anos.

Lula é a grande personagem da nossa época e é profundamente triste que esteja na situação em que está, e estejamos nós, brasileiros, na situação em que estamos. Essa é a tragédia brasileira. Venho pensando sobre isso, sobre o uso da palavra tragédia. Será que podemos usá-la para o caso brasileiro? A tragédia tem um sentido, uma construção – comecei a ler Aristóteles para tentar entender. Se a situação brasileira tiver de fato condições semelhantes, talvez possamos compreender o que está acontecendo e ver grandeza, talvez sentido, talvez esperança na nossa desgraça atual, depois de trinta anos de democracia e dez anos maravilhosos.

O PT no poder, assim como os governos anteriores, não fez reformas democráticas estruturais, o que de fato seria basicamente implantar o que mandava a Constituição de 1988. Duas reformas são evidentes: a democratização da comunicação e a democratização da polícia. Continuamos tendo a polícia da ditadura, uma polícia que bate no povo e mata os pobres, uma polícia que se corrompeu e faz parte do crime organizado. Continuamos tendo uma comunicação controlada por meia dúzia de empresas familiares que manipulam a opinião pública.

Além disso, o PT não aprofundou a democratização da educação, implantando educação básica de qualidade em tempo integral para todos, nem aprofundou o controle social do SUS. Para não falar num sistema de transporte público de qualidade. Também não distribuiu terras, não implantou a democratização da produção agrícola, orgânica, comprometida com o ambiente, em detrimento dos agrotóxicos. De uma forma geral, o PT não aprofundou a democracia, não comprometeu a população com os avanços das políticas sociais. Quando o golpe começou a destruir tudo, a população não reagiu, não se levantou para defender seus direitos; pior: acreditou na lorota que foi o PT que destruiu o Brasil e que as privatizações vão resolver a crise e fazer o país crescer outra vez, ter empregos, renda etc.

A política que o PT adotou foi fazer a economia crescer com investimentos estatais que incentivavam as empresas a produzir. Ao mesmo tempo em que fazia “parcerias” com o capital e se aliava aos políticos das elites, distribuía renda, aumentando o salário mínimo, distribuindo o Bolsa Família e criando programas sociais, de forma que os trabalhadores foram incorporados ao mercado de consumo como nunca antes. Essa incorporação, que tornou cara uma empregada doméstica, que levou negros às universidades e pobres aos aviões, incomodou a casa-grande e gerou ódios que ficaram latentes até 2013, mas já se manifestavam aqui e ali, disfarçadamente, como no artigo da Danuza Leão (“Ser Especial”) publicado na Folha em novembro de 2012).

A democracia é um aprendizado histórico. Vamos aprender e superar essa fase, como superamos a ditadura. Estamos vivendo uma época sombria que não imaginávamos viver há dez anos, uma época muito difícil e muito dolorosa. Hoje parece que éramos incrivelmente ingênuos. As novas gerações serão melhores, mais sábias, e construirão uma democracia melhor, mais sólida, menos ingênua do que a que tivemos entre 1985 e 2016.

 

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