As indústrias da doença

Eu aposto em não adoecer, em levar uma vida saudável e me tratar com produtos naturais. A ideia que sigo no dia a dia é: alimento meu corpo com o melhor para ele funcionar bem e não adoecer; quando adoecer, espero que ele mesmo reaja e se cure. Basicamente, é isso. É a medicina natural, da qual a medicina mais avançada vem se aproximando.

Ontem mesmo assisti a uma palestra de um médico gaúcho cujo trabalho segue essa linha, isto é, em vez de tratar doenças, promover a saúde. O tal “evento” foi decepcionante e absolutamente comercial, no final vendeu um curso de mais de mil reais, já como desconto para quem “participou” e comprou o pacote ontem. Minha opinião sobre o médico, cujos vídeos vejo há mais de dois anos e já me ensinaram muito, piorou. Além de atender ricos, na sua luxuosa clínica em PoA, ficou claro para mim que saúde pra ele é um negócio.

Ele fala claramente que a indústria de alimentos adoece as pessoas convencendo-as a comer porcarias para depois a indústria das doenças as tratar com remédios, exames, internações, cirurgias etc. É o seu mérito, além de nos explicar cientificamente como o que comemos age no nosso corpo, o que faz bem e o que faz mal. Sua lógica, porém é a mesma dos promotores de doença: ganhar dinheiro. Ontem, com plateia, falando durante três horas e levando convidados para contar suas histórias exemplares, seu ego foi lá no alto e ficou evidente que seu negócio é ganhar dinheiro.

Enfim, foi decepcionante, mesmo porque não apresentou nada de novo, era mesmo um “evento totalmente gratuito” para vender um curso. Eu continuarei a recorrer aos seus vídeos esclarecedores para me informar sobre questões de saúde, como tenho feito. O mesmo posso falar do Lair Ribeiro, que foi um pioneiro nessa área, tanto na forma de encarar a saúde como em se promover e ganhar dinheiro. Esta última característica me fez desconfiar dele e levar trinta anos para prestar atenção no que dizia. É um sujeito competente, que fala coisas certas, mas seu ego é tão grande que ofusca seu conhecimento, e meu preconceito contra vendedores me impediu de ouvi-lo antes. Me parece também que, mais velho e na internet, ele ficou mais humilde.

Quais são as questões nisso que escrevi acima? A primeira é que o sistema capitalista no qual vivemos funciona vendendo mercadorias para que os capitalistas donos de tudo ganhem dinheiro, cada vez mais, porque o sistema só funciona se for assim, dando lucro, o que significa produzir e vender cada vez mais, e para realizar seu objetivo não tem nenhum escrúpulo, tudo que dá lucro está valendo: a indústria agrícola usa agrotóxicos que causam doenças, a indústria de alimentos produz comidas que viciam e também causam doenças, a indústria de medicamentos produz remédios, exames, tratamentos etc. para tratar as doenças. Ou seja, uma alimenta a outra, sem trocadilho: o sistema ganha dinheiro produzindo doentes e ganha dinheiro tratando dos doentes.

E agora uma nova medicina ganha dinheiro ensinando como não ficar doente – é louvável, um avanço e tanto, que dá chancela científica ao que a medicina natural já dizia há décadas, mas segue a mesma lógica do sistema capitalista: ganhar dinheiro, agora promovendo a saúde. Isso deve ser feito gratuitamente para todos no sistema público de saúde, não só para ricos que podem pagar caro.

O que está na origem de tudo é a lógica de ganhar dinheiro, de pensar que enriquecer é o objetivo da vida, que o bem-estar é uma “conquista” individual, uma recompensa pelo esforço individual, e não um direito de todos. Quando um indivíduo que tem conhecimento de interesse coletivo limita a transmissão desse conhecimento e dos benefícios que advêm dele a quem pode pagar, ele está selecionando os ricos, critério que considero injusto e moralmente inaceitável. O conhecimento, por mais que venha de esforço individual, é uma produção coletiva: para vender seu curso, o médico famoso dependeu do trabalho do operário anônimo que instalou a fiação da internet, por exemplo.

Toda riqueza é produzida coletivamente, o louvável esforço do indivíduo para ir além do que o sistema lhe oferece não elimina este fato, porque ninguém faz nada sozinho. Incorporar esse conhecimento em comportamento é essencial para melhorar o mundo. Os dois médicos ilustres beberam em boas fontes, como diz aquele aforismo atribuído a Isaac Newton, considerado um dos maiores cientistas: “Se enxerguei mais longe foi porque me apoiei em ombros de gigantes”.

Não é só isso, porém. Toda riqueza e todo conhecimento dependem dos capitalistas, dos empreendedores, dos executivos, dos cientistas, mas dependem também dos que executam tarefas e tornam as ideias e as iniciativas possíveis, inclusive os trabalhadores mais pobres e mais ignorantes. Nem importa discutir o mérito do indivíduo em “ter sucesso”, isto é, ganhar dinheiro como seu esforço recompensado por Deus, que é a ideologia neoevangélica do neoliberalismo, importa que todos tenham acesso às riquezas e conhecimentos, independentemente da sua posição social, do trabalho que fazem, da renda que têm, pelo simples fato de que conhecimentos e riquezas são produzidos coletivamente e não individualmente.

Eu tenho consciência do que os médicos ilustres dizem, isto é, que o sistema nos adoece para depois nos tratar com a medicina convencional, e do que não dizem, que tanto a indústria de comida quanto a indústria de doenças são negócios cujo objetivo é ganhar dinheiro e que é essa lógica que precisa ser superada. Os médicos ilustres não dizem que a lógica capitalista precisa ser superada porque também ganham dinheiro num terceiro filão: a indústria da promoção da saúde, parte do sistema também.

No meu entendimento, a medicina deve orientar os pacientes para cuidar da sua saúde, fornecendo-lhes informações e ajuda. Prevenir doenças, como disse ontem o médico famoso, não é fazer exames que detectam uma doença precocemente, é evitar a doença com práticas saudáveis. Hospital, cirurgia, remédios e outras intervenções devem acontecer em casos excepcionais, não como rotina.

Em resumo: a medicina contemporânea é capaz de operar milagres, mas devemos levar uma vida saudável para que eles raramente sejam necessários.

Não faz sentido levar uma vida que me adoece e depois recorrer à medicina para me curar. Quem segue essa lógica foi treinado pela ideologia do sistema cujo objetivo é ganhar dinheiro de todas as formas, seja promovendo a doença, seja tratando-a, seja promovendo a saúde. Cabe a cada indivíduo romper com isso e mudar sua própria vida, nisso também concordo com o médico ilustre, e mudar assim o próprio sistema, coisa que ele não diz, porque também está se beneficiando dele.

Todavia, essa nova medicina é um avanço, pois divulga informações que os médicos em geral não divulgam, como a relação entre consumo de carne e câncer, e ajuda a mudar comportamentos que por sua vez mudariam o sistema. Basta que as pessoas não comam carne bovina para que o desmate da Amazônia acabe.

Tudo está ligado, o que faz o mundo ser o que é e está nos levando à autodestruição é uma coisa só, assim como o que pode nos levar a uma nova civilização é também uma coisa só. Essa mudança está ao nosso alcance, basta que tomemos consciência de como funciona o sistema e mudemos nossos comportamentos.

PS: A publicidade que aparece neste post não aparece enquanto estou redigindo, eu não ganho nada com ela e não a autorizei. É só mais um exemplo da indústria da publicidade com a qual as empresas de tecnologia enriqueceram e dominaram a internet, coletando e vendendo informações sobre todos nós, que trabalhamos de graça para ela.

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