Fernando e o jornalismo

Ótima conversa com Fernando Lacerda sábado, no curso do Sindicato, cuja aula de encerramento ele ministrou, e depois no Maleta, nas companhias da Andrea, da Alessandra e do Pedro; durante alguns minutos o insigne Carlos Herculano nos honrou com sua presença.

Fernando é um jornalista único entre os que eu conheço. Se penso em compará-lo, só me ocorre o Zé de Castro, mas, embora Fernando tenha sido o pupilo predileto do Zé, no JB, os dois são muito diferentes – talvez mais na aparência e no trato do que na essência humana, é verdade. Zé exerceu a chefia com uma rispidez atemorizadora, Fernando é de uma brandura sem igual. Igualmente intransigentes.

Pensando numa definição para ele formulo a ideia de que Fernando tem orgulho em ser humilde, o que é uma contradição, claro. É uma tentativa de entender sua psicologia, aparentemente tão simples e ao mesmo tempo tão firme – e são essas características que o tornam único. Embora tenhamos feito juntos grande parte das nossas trajetórias profissionais, no JB e depois da Lead, somos quase opostos, eu com minha carreira truncada, ele com uma carreira linear, exemplar, bem-sucedida até no, digamos, infortúnio (Fernando foi demitido da PUC contra a vontade dos alunos, que se rebelaram, sem sucesso, e até da instituição, que lhe fez propostas “indecorosas”; tudo porque, recusando-se a ser um acadêmico, não se curvou à exigência de fazer uma pós-graduação, ainda que pró-forma, e foi professor durante quase vinte anos tendo apenas a graduação; era bom professor porque era jornalista, argumentava, porque estava na ativa da redação, e não ia se afastar do jornalismo para obter títulos).

No seu cabo de guerra com a universidade Fernando tinha toda razão. Sobre a necessidade de o professor de jornalismo estar na redação, eu sempre concordei com ele (meu melhor professor foi o Charles Magno, o único que também era repórter, e abandonou a universidade precocemente para continuar na redação), mas tomamos decisões completamente diferentes. Quando foi convidado a dar aulas, Fernando aceitou prontamente, e revelou-se excelente professor. Pouco depois ele mesmo me consultou se podia me indicar para uma vaga no curso e eu agradeci, mas declinei.

Explico: meu curso de jornalismo foi péssimo, em quatro semanas de redação aprendi mais do que em quatro anos de faculdade; pensava que a formação do jornalista deveria ser técnica, prática, acrescida de ética e associada à formação em outro curso superior. Seria incoerente se, pensando assim, me tornasse professor de jornalismo.

Não sei o que exatamente Fernando pensa sobre isso, mas como raramente discordamos em relação ao jornalismo, acho que concorda. A decisão de ser professor talvez tenha sido motivada pela relação afetiva com a universidade na qual estudou, por voltar a ela como professor no curso em que formou. Talvez. Eu estudei na Fafich e não tinha a mesma simpatia pela PUC; pra mim ela era só um campus muito distante. Eu achava que ele transigia dando aulas; eu era coerente e radical.

Na prática, Fernando ajudou a formar turmas e mais turmas de jornalistas que o escolheram para paraninfo inúmeras vezes, que o adoram e são melhores profissionais por influência dele. Bem, eu com minha coerência radical, não ajudei a formar ninguém. Fernando aposentou-se como professor, o que não é mau; eu, mais velho do que ele, não aposentei ainda. A vida não é simples como sugerem os argumentos lógicos, principalmente a vida é vivida na prática. Hoje, como em quase tudo, não posso dizer que teria a mesma atitude que tive há mais de vinte anos, nem que Fernando estivesse errado. Acrescento que, caso eu tivesse me tornado professor, não teria nenhum pudor – ao contrário, teria interesse – em fazer um mestrado, coisa que já tinha tentado antes. É bem possível que tivesse sido bom para mim dar aulas, voltar à universidade, fazer pós-graduação, tornar-me o que Fernando nunca quis ser, um acadêmico. Ao contrário dele, talvez eu tenha sido um acadêmico que trabalhou como jornalista.

O que vejo, hoje, é que Fernando foi coerente e feliz como professor e jornalista, sem confundir as aulas com a vida acadêmica. “Eu sempre fui um jornalista que dava aulas de jornalismo”, definiu-se no curso do Sindicato. Quando começou a dar aulas, ele já tinha dez anos de profissão, uma experiência considerável no JB, na qual aprendeu o que praticava e testou seus princípios, e era isso que transmitia aos seus alunos, com admirável coerência.

A impressão que eu tive, ouvindo sua aula, depois de conviver com ele durante mais de 30 anos, é que Fernando nasceu para ser jornalista. Muito jovem ainda tomou essa decisão e se iniciou – não como a grande maioria, deslumbrada com essa profissão que põe jovens na ribalta e os faz se confundirem com políticos, empresários, artistas etc., sem os ser, na busca do sucesso, do estrelato ou da realização literária, ou se frustrarem num trabalho que exige muito e remunera pouco. Fernando não apenas definiu muito cedo que queria ser jornalista, como também definiu que tipo de jornalista queria ser, e é isso que o torna raro, senão único, entre os profissionais que eu conheço.

Essa definição clara do tipo de jornalista que se quer ser é o que se chama ética, uma coisa muito difícil de se praticar e que para ele parece tão fácil. Fernando foi essencialmente repórter, função que considera a mais importante no jornalismo – no que concordamos com ele eu e todos os jornalistas que respeito. Como repórter, principalmente esportivo, foi sempre o que se chama pé de boi; durante décadas acostumou-se a trabalhar até dezesseis horas por dia, com descansos quinzenais.

Um trabalho silencioso, o que não quer dizer que ele fale pouco – isso ele tem em comum com o jornalista típico, gosta de falar e fala muito, mas reservava o discurso para as horas de folga, com um copo de cerveja defronte, e para as aulas na faculdade (é possível, penso, que ser professor lhe fizesse bem também por esse motivo).

Não à toa, Fernando define como qualidade fundamental do repórter não ter preguiça. Que outro jornalista começaria a qualificar um repórter com essa virtude? Nunca vi Fernando reclamar do trabalho. Já o vi cansado e temi que, por seus hábitos sedentários e alimentares, sofresse um colapso súbito, o que, curiosamente, só veio a acontecer quando se aposentou. Mas até nisso Fernando foi bem-sucedido, porque superou a crise mudando hábitos, emagrecendo e abandonando até a cerveja, embora seja hoje um próspero dono de bar. Sem mágoas ou arrependimentos, bem-humorado, ele é capaz de se sentar diante de uma roda de estudantes e jornalistas e discorrer durante horas sobre a profissão que exerceu, dando uma aula de competência e ética, falando não de princípios, mas da sua própria experiência durante quase quatro décadas. Com uma firmeza que pareceria ficção, não fosse alicerçada o tempo todo em casos, histórias, exemplos concretos.

Daí a minha ideia de que Fernando sente orgulho em ser humilde.

Todas as afirmações que Fernando fez na sua aula pertencem ao bom senso, mas o bom senso, como observa Descartes, é a coisa mais bem dividida do mundo, todos pensam que têm bastante, e o bom senso expressado por Fernando, que parece tão simples, parece ao mesmo tempo inexequível no mundo real, corrupto, venal, vicioso. Fernando precisava provar sua ética com sua prática profissional, e foi o que fez. Hoje, ao dar uma aula, aos 60 anos, ele não fala de princípios, fala de prática. É o que o torna mais admirável.

Fernando é uma prova viva de que é possível ser jornalista ético e bem-sucedido. E não apenas profissionalmente, também na vida: Fernando é casado há 33 anos (a primeira festa a que compareci, quando entrei no JB, foi o casamento do Fernando e da Luísa), tem três filhos, dos quais dois jornalistas, igualmente reconhecidos, sendo que o mais velho, ensaiando mudar de profissão, como tantos nessa crise do jornalismo, já se sai bem na nova atividade, assim como Fernando se tornou um feliz birosqueiro em Tiradentes.

Mas não estou falando do Fernando apenas para lhe fazer o elogio, mais que merecido e, digamos, um acerto de contas com a nossa amizade de décadas. Com minha índole imaginativa, me pus a pensar desde ontem nos rumos do jornalismo, em por que as coisas estão como estão, como poderiam ser, como podem ser, o que devemos fazer, o que o sindicato pode fazer. Acho que as ideias estão no ar e várias coisas já estão acontecendo – o próprio curso é prova disso. Falei sinteticamente do que penso, na conversa no Maleta, e já escrevi mais extensamente sobre o assunto. Tenho essa necessidade de entender as coisas para tirar conclusões, para não fazer propostas mirabolantes, meras conversas de bar.

(Continua.)

 

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