Depois da Nova República, o fascismo?

diretas já bh 1984 foto marcelo prates

A questão mais importante do momento político atual é saber se a eleição do candidato militar da reserva significará o começo de um regime fascista no Brasil.

O golpe de 16 encerrou o período democrático conhecido como Nova República (1985-2016), que sucedeu a ditadura militar (1964-1985). Foi dado por políticos de direita e centro descontentes com a presidenta reeleita em 2014 e deflagrado pela não aceitação do resultado eleitoral pelo partido derrotado em 2014, com apoio do ativismo dos grandes veículos de televisão, rádio e impresso, de processos judiciais movidos por procuradores e juízes e com a cumplicidade do Supremo Tribunal Federal. Para criar condições para o golpe, na forma de impeachment, os golpistas tiveram de mobilizar massas de classe média e propiciaram a ascensão de políticos de extrema direita. Na eleição deste ano, a direita golpista naufragou e foi substituída pela extrema direita.

A democracia durou 31 anos, dez mais que a ditadura, e fez duas gerações de brasileiros se acostumarem à liberdade. Terminou na atual crise de descrédito dos políticos, que leva grande parte dos brasileiros – no dia 28 saberemos se a maioria – a optar por uma solução moralizadora militar. O que representará para a nação a volta de um militar ao poder, agora não mais um general, mas um simples capitão?

Em primeiro lugar, é preciso pensar no que representou para os brasileiros, há mais de três décadas, a chamada nova república. E o primeiro ganho da democracia inaugurada em 1985 foi justamente a retirada dos militares do governo.

Por que a saída dos militares do governo foi o primeiro ganho dos brasileiros? Porque as Forças Armadas são um corporação cujo objetivo é proteger um povo e uma nação de agressões de povos e nações estrangeiras.

Num país pacífico como é o Brasil, cuja última guerra aconteceu em meados do século XIX, a chamada Guerra do Paraguai (o Brasil mandou tropas à II Guerra Mundial, mas sua participação foi política, a nação não estava envolvida na disputa, que teve caráter europeu, asiático e norte-americano), é despropositada a existência de um contingente tão grande e tão poderoso, internamente, de militares. Tal situação só se explica, primeiro, por aquela guerra encerrada em 1870, para a qual se formou o exército nacional, e, segundo, pelo papel desempenhado por este na derrubada da monarquia e formação da república. A história do Brasil republicano ficou intimamente ligada à atuação política do Exército.

O papel das Forças Armadas é defender a nação e seu povo de ameaças estrangeiras, não é governar. Exércitos são forças disciplinadas, com comando hierárquico, guiadas pela obediência cega e pela punição aos divergentes, e que detêm o monopólio do uso de armas. Uma força assim, voltada contra o povo, gera um confronto desigual e violento, e a submissão. Levada à sociedade, a hierarquia e a disciplina militares geram a ditadura, mando e obediência, sem discussão. Para completar, militares nada ou muito pouco entendem de política, de assuntos sociais, de economia e de todos os assuntos que fazem parte da complexa sociedade contemporânea. A presença de militares na política é o fim da democracia e só pode trazer danos à sociedade.

Por isso mesmo, as intervenções militares ao longo da República foram sempre pontuais; o Exército era uma sombra à política dos civis, sempre de prontidão, para intervir quando considerasse necessário, quando a “bagunça” fosse intolerável, e pôr “ordem na casa”. Foram dois presidentes generais (Deodoro e Floriano) e inúmeras “revoltas” ao longo da Primeira República (1889-1930). Quando, em 1930, os militares resolvem tomar o poder de forma definitiva, associam-se a civis revoltosos e entregam o poder a um líder civil, Getúlio Vargas, que se tornará ditador.

À ditadura do Estado Novo segue-se um novo período democrático, inaugurado com os ventos renovadores da derrota do nazifascismo na II Guerra Mundial, mas os militares continuam se manifestando em golpes e tentativas de golpe, até uma nova “revolução”, em 1964, quando um golpe derruba o presidente João Goulart. Dessa vez, no entanto, os militares não entregam o comando a um civil nem se limitam a “pôr ordem na casa”: tomam o poder para si e instauram uma nova ordem política, um regime militar, com sucessão de presidentes militares, politização dos militares, uma ditadura que vai durar 21 anos.

A redemocratização de 1985, portanto, tem como primeiro ganho a retirada dos militares da política, a desmilitarização da sociedade, o fim daquela ordem hierarquizada, disciplinada, autoritária, imposta pela força das armas. É essa também, portanto, a primeira perda que a sociedade sofrerá ao entregar o poder a um capitão e um general, elegendo-os para dirigir a nação. Ou eles se diferenciam dos políticos civis, para cumprir sua missão, ou irão fracassar.

Como fracassaram, aliás, os militares na ditadura. Se no primeiro momento o regime militar gerou o chamado “milagre brasileiro”, ao seu final, o Brasil estava em profunda desordem econômica e social. Foi esta, seu fracasso, a causa do fim da ditadura. Por um lado, as insatisfações da sociedade explodiam, culminando na campanha Diretas Já!; por outro, a liderança mais lúcida do Exército compreendeu que precisava preservar a instituição e fazer uma retirada organizada do poder.

A volta dos militares ao governo, dessa vez pelo voto popular, embora numa eleição excepcional, dentro de um golpe (não mais civil-militar, mas agora parlamentar-judicial-midiático) que depôs a presidenta reeleita, terá mais sucesso que a ditadura militar?

Uma máxima muito conhecida diz que um povo que não conhece sua história está fadado a repeti-la. Estamos diante disso. A educação que a nova república proporcionou aos cidadãos, em especial às novas gerações, parece não ter sido eficiente no que se refere ao aprendizado sobre os males da ditadura militar. Para a minha geração, que cresceu sob a ditadura e que se mobilizou pelo seu fim (a campanha das diretas é ainda hoje o mais massivo e bonito movimento que o Brasil já viu), não há dúvida sobre isso. Colocá-los em dúvida deveria ser inadmissível para uma sociedade democrática. No entanto, uma das bandeiras do militarismo em ascensão é exatamente o revisionismo dos livros escolares, numa tentativa de reescrever a história, para eliminar identidades, atacar a esquerda e exaltar os militares.

É como tentar fazer a pasta de dente entrar novamente no tubo à força, com a ameaça das armas. Sabemos que é uma tarefa impossível e que no fim pouca pasta terá sido “recuperada”, mas grande parte dela se perderá nesse embate violento.

A lógica do governo militar que pode ser eleito no dia 28 de outubro, porém, é essa. Ou o candidato da extrema direita, uma vez presidente, desrespeita aqueles que pensam e agem diferente dele, persegue trabalhadores, jornalistas, professores, pobres, negros, mulheres, nordestinos, indígenas, sem-casa, sem-terra, homossexuais, transexuais, religiosos não cristãos, ateus, esquerdistas, socialistas, social-democratas, liberais, comunistas, anarquistas, ou será apenas mais um político a não cumprir suas promessas de campanha.

Se for coerente, o militar instituirá uma comissão para rever os livros escolares e censurará todos aqueles que não estiverem de acordo com sua visão reacionária e autoritária. A isso, pela lógica, deverá se seguir uma censura a livros e publicações em geral, inclusive a jornais e revistas impressos e à internet.

A disciplina escolar de moral e civismo, pregando os valores dos militares e dos evangélicos, deverá ser instituída nas escolas, e solenidades com o mesmo propósito deverão ser criadas para mobilizar e regenerar toda a sociedade.

Direitos das mulheres e das minorias serão abolidos, favelas serão sitiadas, reservas indígenas e quilombos serão extintos, greves e protestos de trabalhadores serão reprimidos, as liberdades de opinião, de manifestação, de ideias, de expressão serão suprimidas.

O capitão – se eleito presidente – fará isso? É incrível que saibamos – que o cidadão comum, que o eleitor que decidirá a disputa saiba – tão pouco de um político que está prestes a se tornar presidente.

Se o candidato a presidente é um capitão, seu vice é um general. Dada a hierarquia militar, o capitão pode ser apenas o cavalo-de-tróia – o político militar da reserva – que levará de novo os generais ao poder. Nesse sentido, é sintomático que os mesmos grupos que criaram bonecos infláveis gigantescos do ex-presidente Lula presidiário, da presidenta Dilma deposta e do capitão salvador da pátria, na campanha do impeachment, tenham criado mais recentemente o boneco do general para figurar como símbolo de novas manifestações de rua na ausência do capitão convalescente.

Essa ascensão da direita militar, que começou em 2013 e cujo ponto culminante nunca parece chegar (parecia primeiro ser o impeachment, depois a prisão do Lula, depois a liderança do capitão nas pesquisas, depois sua vitória parcial no primeiro turno, e agora não sabemos mais qual será, se a vitória no segundo turno ou a implantação de um novo regime político de moldes fascistas ou outra coisa), é surpreendente em quase tudo, mas uma coisa é certa: não é espontânea, ao contrário, é muito bem articulada.

O que não sabemos ou sabemos pouco – porque temos uma esquerda desnorteada e um centro debilitado, ao mesmo tempo que a imprensa, que deveria nos informar, há muito deixou de cumprir sua função e se tornou um partido golpista – é como a extrema direita se articulou, que forças organizadas da sociedade estão à sua frente e como ela é financiada. Há suspeitas: de participação do governo americano, de financiamento do capital internacional, de uma inteligência especializada na veiculação de notícias falsas na internet (fake news), de articulação militar de capitães, majores e coronéis, de participação de milícias, de articulação dos novos políticos-empresários evangélicos.

O fato é que essa articulação parece estar sempre um passo adiante da direita e dois da esquerda. E que seu projeto de substituição da democracia por um novo regime autoritário – com a bênção dos bispos, a garantia das armas e agora com o referendo das urnas – está em franco desenvolvimento.

(Foto: comício da campanha Diretas Já em Belo Horizonte, em 1984. Crédito: Marcelo Prates.)

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