Capitalismo, barbárie e democracia

Em política, o que se faz é o que se quer. Porque política é dissimulação, diz-se uma coisa e faz-se outra. Então, vale o resultado, o que se faz é o que de fato se quer.

Assim, temos um governo escroto, que fala as coisas mais absurdas, seguindo o exemplo do presidente, enquanto destrói direitos dos cidadãos e entrega as riquezas nacionais ao capital financeiro internacional. É isso o governo, é assim porque quer. O presidente falou horrores durante toda a sua trajetória política, antes mesmo de ter mandato legislativo, quando era, no Exército, um dissidente da redemocratização. E como tal foi expulso da corporação e se tornou político, sendo eleito (se não me engano) vereador e dois anos depois deputado federal, assumindo a liderança política e se tornando porta-voz de uma parcela da população, depois de outras, transformando-se, enfim, no símbolo do que tudo que há de reacionário e criminoso. É esse o político, a novidade é que no ano passado ele se tornou o preferido da maioria da população brasileira.

Como isso aconteceu? A maioria da população brasileira, que há nove anos dava 87% de popularidade a Lula, o oposto do atual presidente, um político que veio do povo e expressava os anseios mais nobres dos brasileiros, esses brasileiros, em tão pouco tempo, tornaram-se reacionários?

Há em parte verdade nisso, se consideramos que a população evangélica, uma das bases do atual presidente, cresceu muito; que o atual presidente, como Lula, veio do povo, ao contrário dos políticos que nasceram nas elites endinheiradas; e que o povo é ignorante, segue a onda e não pensa com sua cabeça, que se opõe aos políticos dos ricos, mas se deixa enganar por políticos que fingem indignação às injustiças e à corrupção do sistema. Tudo isso explica em parte como a maioria do povo brasileiro virou da esquerda para a direita, de Lula para esse presidente neonazista. É pouco, porém. Como foi que o povo escolheu um presidente que prometia fodê-lo e que, eleito, cumpre o que prometeu?

Boa parte desse paradoxo vem do fato de que, como é essência da política, o candidato mentiu e continua mentindo. Seu modelo de política é um modelo importado do seu exemplo americano que adota o que há de mais moderno na tecnologia – a internet, a informática, as redes sociais, os computadores portáteis, a chamada T.I. – para disseminar mentiras e fazer o povo acreditar que o que diz é verdade e que o que dizem seus adversários é mentira. Ou seja, uma verdadeira subversão dos fatos e uma institucionalização da mentira como modus operandi da política. O que importa não é o fato, o que importa é a versão e fazer com que ela prevaleça.

O atual presidente americano adotou e adota isso, o presidente brasileiro também, com a diferença que este adaptou o modelo às suas características, isto é, a militarização, o crime organizado, a ideologia evangélica, sem que, como acontece nos EUA, tenha as instituições democráticas – imprensa, justiça e Congresso – para contê-lo. Quer dizer, aqui essas instituições são muito mais frágeis e grande parte delas está com ele, apoiou ou preparou sua escalada, com o golpe de 2016 e o governo golpista.

Ou seja, no Brasil, o que aconteceu é mais complexo, mas o escroto governo atual pode ser explicado de forma semelhante. A questão fundamental, porém, é que deve ser explicado dessa forma, pelo entendimento da política, não pode ser explicado pelas cartilhas da esquerda, que vêm da tradição marxista e leninista.

Marx é um pensador fantástico, seus livros sobre o capital e a política no século XIX são obras-primas do pensamento. Ninguém entendeu os acontecimentos da segunda metade do século XIX como ele. Da mesma forma impressiona a capacidade que teve Lênin – e, no calor da revolução, também Trótski – de liderar uma revolução, montando um pequeno exército disciplinado, fiel a uma ideologia e a um comando, que se impôs sobre o pequeno proletariado industrial e com este sobre as massas camponesas, formando um grande exército, o Exército Vermelho, organizado e comandado por Trótski, que derrotou seus inimigos reacionários e os exércitos estrangeiros e se impôs como governo da maior nação do mundo. Foram feitos fantásticos, mas tudo aquilo deu em Stálin, que foi o pior ditador da História, ou um dos piores, certamente o pior da modernidade, superando Hitler, Mussolini e outros menores, porque os efeitos da sua ditadura foram mais extensos e mais prolongados.

Discutir o marxismo e o leninismo é uma tarefa complexa que exige tempo e muitas palavras. O que eu quero dizer, de forma resumida, é que Marx acertou na análise da sociedade capitalista e Lênin foi um grande líder revolucionário, mas o marxismo e o leninismo cometeram erros que trouxeram prejuízos igualmente enormes para a humanidade.

O erro de Marx foi científico: ele propôs uma teoria que não se confirmou, a teoria da luta de classes como motor da História, pela qual a burguesia e o capitalismo geravam a classe e o sistema que os substituiriam, respectivamente o proletariado e o socialismo. Lênin – e Trótski – acreditou na teoria marxista e julgou que tudo que o proletariado (e sua parcela mais avançada, isto é, os comunistas, isto é, ele e seus liderados) fizesse seria bom, seria certo; organizou o partido que lideraria a revolução proletária na Rússia e desprezou a democracia e a liberdade.

Em outras palavras, marxismo-leninismo resulta em stalinismo, não em comunismo. E tanto é assim que foi assim. A organização revolucionária leninista é dependente do indivíduo que está no topo.

Há marxistas que argumentam que se Lênin não tivesse morrido, tudo seria diferente. Há marxistas que argumentam que se Trótski fosse o sucessor de Lênin, tudo seria diferente. É claro que seria, tanto num caso como em outro, porque nem Trótski nem Lênin era Stálin. No entanto, foi Lênin quem criou a estrutura que Stálin controlou, e nunca teve dúvidas em esmagar seus opositores. E Trótski, no poder, cometeu crimes terríveis também, como a repressão aos marinheiros que tinham sido a vanguarda da revolução. Talvez Trótski e Lênin tivessem compreendido seus erros e liderado a organização de uma sociedade democrática e socialista, em vez de praticar o terrorismo de Estado e construir uma sociedade dominada por uma burocracia corrupta, com um ditador no topo.

O erro fundamental do leninismo é que a democracia não é um meio, mas um fim. Lênin criou o “centralismo democrático”, que possibilitou a ascensão de um ditador – enquanto o ditador foi ele, um idealista (pragmático, mas idealista) genial, o ideal esteve preservado, ainda que o real fosse pervertido, mas quando o ditador foi um pervertido como Stálin a ditadura tornou-se o ideal pervertido. Mil vezes o capitalismo ao socialismo stalinista. Mil vezes a democracia burguesa à ditadura proletária.

O erro fundamental do marxismo é que a História não é uma ciência, o proletariado não é revolucionário e o socialismo não sucederá o capitalismo.

É preciso partir disso, é preciso reconhecer esse erro essencial para fazer a crítica do marxismo e, muito mais do que isso, formular uma política de esquerda que não se baseie nem na revolução nem no proletariado, mas na democracia, na ação consciente dos indivíduos, na organização de uma sociedade justa, igualitária e livre. Mesmo na revolução a democracia deve ser preservada e a liberdade deve ser um valor insuperável. Porque, se o proletariado não é a força social que defende a democracia e a liberdade, ele é o quê? Quem vai defendê-las? Na sociedade contemporânea, em que o proletariado industrial definha, substituído pelas máquinas automatizadas, devemos considerar os trabalhadores de forma mais ampla, como todos aqueles que dependem do seu trabalho para viver, e que se organizam – social e ideologicamente – de diversas formas, e estes são a força progressista, os que querem a igualdade, a liberdade, a fraternidade.

Os ideais da Revolução Francesa permanecem atuais. E tudo isso se resume a uma palavra: democracia. É a vontade coletiva, a escolha da maioria e o respeito às minorias que devem moldar a sociedade. E é uma construção difícil, que nenhuma teoria nem líder iluminados vão possibilitar, num passe mágico, numa revolução.

Revoluções não cumprem seus objetivos, pelo menos imediatamente, nem cumprem as previsões dos seus líderes, basta olhar a Revolução Russa e a Revolução Francesa. Se a Revolução Francesa foi uma revolução burguesa, se foi o motor que movimentou a organização do capitalismo e a institucionalização do poder burguês, aos poucos, em fases sucessivas, que passaram por novos conflitos e revoluções menores, ou tentativas de revolução e golpes de Estado, a Revolução Russa também o foi, possibilitando que, enfim, 70 anos depois, os capitalistas ascendessem ao poder e reorganizassem uma sociedade baseada no individualismo e no capital privado.

A Rússia nada tem de comunista, assim como a China também não tem. O que acontece é que cada nação e cada povo organiza a sociedade capitalista de acordo com sua história e sua cultura. É o capitalismo, porém, que prevalece. O que está em discussão desde o século XIX – e o marxismo tentou negar com sua teoria da luta de classes, da revolução proletária e do socialismo – é que tipo de capitalismo queremos ter.

Os americanos, atônitos com a crise de 1929, abriram mão dos seus ideais liberais e fizeram a reforma que salvou o capitalismo no século XX, num mundo em que todas as soluções bem-sucedidas eram estatizantes, autoritárias e intervencionistas, em versões nazistas e stalinistas, puras ou combinadas. Depois da Guerra Fria, depois que a URSS acabou e que a China se firmou como nação capitalista autoritária, o New Deal foi abandonado, o neoliberalismo ganhou força e dominou o mundo, provocando o crescimento e a desordem que vemos hoje, cuja resultado iminente – além das perdas de direitos dos trabalhadores e dos cidadãos – são as mudanças climáticas.

O capitalismo vai destruir a civilização, porque ele é baseado na irracionalidade, no crescimento econômico contínuo, no individualismo e no imediatismo. O mundo do século XXI é esse mundo da destruição da civilização capitalista, e Trump, lá, e o capitão, aqui, são as expressões disso. A civilização e a humanidade só podem escapar desse destino se optarem por outro. Acontece que por enquanto não há outra proposta no horizonte. O New Deal só surgiu quando a crise se tornou tão grande que o capitalismo parou de funcionar, quando o stalinismo já estava instalado e o nazismo crescia a todo vapor, influenciando, uma e outra ideologias, todas as nações do planeta.

Se há uma esperança para o mundo contemporâneo é pensar que os Aliados, representando e unindo as forças progressistas e evoluídas do mundo, foram capazes de derrotar a barbárie. Muito sofrimento, porém, aconteceu antes, durante e depois da derrota do nazifascismo. Nada garante que os sofrimentos atuais sejam recompensados igualmente com a vitória – pelo menos dos ideais – da liberdade e da democracia, mesmo porque uma guerra mundial, hoje, com as armas atômicas que as nações possuem, teria um poder destruidor que conduziria de qualquer forma à barbárie. Na história do Brasil, isso é muito claro: foi o ditador Getúlio Vargas, o mesmo que flertou com o nazifascismo e o praticou internamente, quem conduziu os brasileiros para as forças aliadas; a democracia que tivemos entre 1946 e 1964 equilibrou-se entre golpistas, militares, populistas e stalinistas; a forças que se diziam democratas e liberais nos deram uma ditadura de 21 anos, e agora temos um novo golpe, um novo governo militarizado e autoritário, depois de apenas 31 anos de democracia.

Em política, o que se faz é o que se quer. O atual governo implanta aceleradamente um liberalismo radical e faz isso de forma autoritária, armando milícias, pregando contra direitos e liberdades, sustentando-se na militarização da política. É esse o Brasil, é a repetição de 1964, porque só se pode implantar o liberalismo numa nação desigual como o Brasil com autoritarismo. Quando se respeita a democracia e a liberdade, o povo acaba por impor sua maioria, que barra as injustiças, as desigualdades, optando por políticos populistas, isto é, políticos que trocam benefícios sociais por votos. Do contrário não são reeleitos.

É claro que a realidade é muito mais complexa do que isso, porque nuna sociedade democrática todas as forças sociais estão em ação, confundindo acontecimentos e misturando efeitos. Se há uma ideia certa do marxismo é que por trás de tudo está sempre o capital, desenvolvendo as forças produtivas – e foda-se o povo, fodam-se os trabalhadores, os direitos, a cidadania, a civilização. O progresso capitalista é o progresso econômico, que concentra as riquezas. E se há uma coisa errada no marxismo é que o capitalismo não será derrotado pela História, pelas forças que impulsionam o desenvolvimento. Se queremos outra coisa que não esse mundo bárbaro, quem quer outra sociedade, outra civilização, precisa formular o que quer e enfrentar o capital, controlar o capital, dominá-lo e submetê-lo aos interesses coletivos, sociais, dos trabalhadores, que são aqueles que de fato produzem as riquezas e para quem elas devem ser produzidas.

Que meia dúzia de indivíduos detenha o capital e com ele as riquezas que os trabalhadores produzem, e o poder político, é uma aberração que nenhuma sociedade civilizada, só uma sociedade bárbara, estupidificada por ideologias obscurantistas, pode aceitar. O que a civilização, o progresso, a humanidade, a coletividade, os trabalhadores querem é a democracia, a justiça, a igualdade, a fraternidade, a liberdade. É assim que devemos ser e para isso que devemos agir. Enquanto esses princípios não forem formulados como orientação e prática da política não vamos superar os efeitos nefastos do capitalismo e continuaremos caminhando para a barbárie.

 

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