A minha geração

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Jair Bolsonaro tem a minha idade, mas não representa a minha geração. Lula é dez anos mais velho, talvez por isso tenha sido venerado. Minha geração fez história, derrubou a ditadura e redemocratizou o Brasil. Começou pelas universidades, pelo movimento estudantil, em 1977. No ano seguinte, veio a greve operária, em São Bernardo do Campo, e com ela, Lula. Bolsonaro tem a minha idade, mas não representa nada disso, representa a ditadura que acabou há 35 anos. Se nós fracassamos, Bolsonaro não tem a menor chance de sucesso, porque ele quer o impossível, quer voltar no tempo, quer uma ditadura que nem a ditadura que houve é, quer uma ditadura ideal, a ditadura daqueles que perderam no próprio Exército, daqueles que torturavam nos porões e foram afastados por Geisel, Golberi e Figueiredo, daqueles que jogaram bombas em bancas de revista, que mandaram bombas embrulhadas como presentes e mataram os destinatários, que planejaram explodir um ginásio lotado com as portas trancadas. Bolsonaro planejava explodir bombas em quartéis. Nem no pior período da ditadura um terrorista foi presidente.

Minha geração esperava pelo messias, e não foi Bolsonaro, foi Lula. Minha geração, que fez greves estudantis, greves operárias, atos públicos, manifestações, campanha das diretas, foi influenciada pelo pensamento marxista, leninista, stalinista. Minha geração acreditava em revolução, em proletariado, em socialismo. Lula era o messias proletário que lideraria as massas para a revolução brasileira. Só que não foi, só que não era. Lula era o autêntico líder operário, mas nunca foi revolucionário; era o homem do povo que chegou à presidência, mas não enfrentou os ricos. Lula sempre foi um conciliador, um negociador, um articulador. E um “encantador de serpentes”. Lula sempre foi o maioral porque em todo ambiente em que se meteu convenceu a todos ou a maioria de que sua proposta era a melhor, uniu os divergentes e os liderou. Lula foi o presidente do seu sindicato, foi o líder grevista, foi o líder dos dirigentes sindicais, foi o líder do partido dos trabalhadores, foi o líder a oposição, foi o líder dos brasileiros.

A história dos últimos quarenta anos no Brasil é a história da ascensão e queda do Lula. Lula ascendeu ao topo e teve projeção internacional porque sempre conseguiu representar e unir em torno dele aqueles a quem reunia para negociar. Lula uniu o Brasil inteiro para negociar: operários e banqueiros, sem terra e fazendeiros, mulheres e homens, castas privilegiadas e famintos, industriais e sem teto. Lula foi um fenômeno político, só similar a Getúlio Vargas. Daí também o seu fascínio. Um sujeito de um carisma enorme. Lula só não é Deus, só não é perfeito, só não é infalível. Nada disso: o que Lula construiu foi um castelo de cartas, que ruiu quando ele não conseguiu mais unir os adversários em torno dele, porque não estava mais no poder. Isso me parece a coisa mais impressionante na trajetória do Lula: por que ele deixou o comando? Por que não se afastou do poder? Por que optou por colocar na presidência alguém incapaz de articular e unir? Para voltar, quatro anos depois? Ou será que foi o câncer que perturbou Lula, que o tirou do controle, dos bastidores?

Aquele foi o grande erro do Lula, que eu não sei explicar, mas sei explicar os erros que a minha geração cometeu confiando num messias. Embora a trajetória do Lula tenha sido extraordinária e faça parte da história como a de Getúlio e JK, ela foi a trajetória de um líder de massas à qual nós, que amávamos a revolução, nos submetemos passivamente – e olhando , hoje, em retrospecto, impressionantemente. Porque a trajetória política do Lula e do PT está muito, mas muito distante mesmo, da ideia que nós tínhamos da revolução. Lula e o PT nem de muito longe arranharam qualquer objetivo revolucionário, não chegaram nem perto do socialismo, nem da social-democracia. Lula e o PT tiveram um ideário na oposição, para fustigar, para incendiar, para propagandear, e uma política efetiva muito diferente quando estavam no poder. Pode-se argumentar que a teoria na prática é outra, e é verdade, mas o que aconteceu com Lula e com o PT foi mais que isso, foi outra coisa.

Traição é uma palavra forte e enganosa. A bem da verdade, Lula nunca enganou ninguém, todos que o cercavam ou acompanharam durante mais de duas décadas e meia conheciam seu estilo conciliador que o fez avançar. Alguns podiam alimentar dúvidas se uma vez no poder ele não mudaria, se não se transformaria num revolucionário, mas era improvável e não foi o que aconteceu. Na presidência, Lula se tornou o que tinha sido até então, e atingindo o cume, revelou-se o melhor presidente que mais de uma geração tinha visto. Porque Lula tem as qualidades políticas para ser presidente, não foi o presidente do PT, não foi o presidente dos trabalhadores, foi o presidente dos brasileiros, num típico governo democrático liberal capitalista, talvez o governo mais americano da história do Brasil, só comparável a JK. Tão democrático que foi o único presidente da nossa história, desde o fim da Velha República, que recebeu a faixa do presidente eleito antes deles e passou-a à presidenta eleita depois dele. Mas foi justamente na sucessão de Lula que a vaca foi pro brejo.

No calor da luta, encantados por Lula durante quarenta anos, não vimos seus erros na hora ou não demos a eles a importância necessária. Apoiamos a reeleição da Dilma, ficamos contra o golpe. No entanto, mil vezes, hoje, a eleição do Aécio ao que veio depois: o impeachment, o governo Temer, a eleição do Bolsonaro. Não vimos o que estava acontecendo de fato porque não éramos mais revolucionários, não éramos socialistas, não éramos sequer social-democratas, éramos seguidores do Lula, éramos lulistas e petistas.

Hoje é muito fácil ver o que nos advertia um cientista político americano muito caro aos tucanos: quando políticos democratas brigam entre si, abrem caminham para políticos autoritários. Do ponto de vista tucano, o pecado foi capital: contestar o resultado da eleição, sinalizar para o golpe e apoiar o impeachment. Mas o PT também cometeu um erro capital, que se repetiu em 2018: não entender que a democracia precisa de alternância no poder, depende de pelo menos dois partidos fortes, que eleições seguidas do mesmo partido é um desequilíbrio, principalmente quando esse partido tem dono.

O que aconteceu em 2014, e tinha acontecido antes, em 2010, e voltou a acontecer em 2018, foi o confronto entre a oposição, todo o restante do país, contra um único político: Lula. O que tivemos entre 2002 e 2018, em cinco eleições sucessivas foi: Lula, Lula outra vez, o poste do Lula, o poste do Lula outra vez, o candidato do Lula. Voltando ao começo desse texto, podemos acrescentar: Lula derrotado por Collor (com ajuda da Globo), mas tendo antes derrotado Brizola, em 1989; Lula derrotado por FHC em 1994, Lula derrotado de novo por FHC em 1998. Lula disputa o poder no Brasil desde 1989, ganhou quatro vezes e perdeu outras quatro. Como será em 2022?

Lula deu aos brasileiros o melhor governo que tivemos desde 1964 e à minha geração, os melhores anos das nossas vidas, a “Era Lula”. Passados dez anos do fim do seu governo, porém, quase nada ficou, tudo ruiu, e o que veio depois foi muito pior. Tudo isso são constatações e o que importa é entender por que foi assim, quais foram os erros. Alguns deles eu já citei, os vejo com nitidez.

O PT não foi o partido popular e democrático que deveria ter sido, tornou-se o partido da trajetória do Lula rumo ao poder, que ascendeu e caiu com ele. O que não significa que o defeito foi não ter sido o partido revolucionário que a minha geração queria que fosse. Recapitulando: quando a ditadura acabava e a ideia de criação de um partido de esquerda surgiu, discutia-se se seria um partido revolucionário, um partido comunista, um partido socialista, um partido social-democrata, um partido popular ou um partido trabalhista, incluindo várias vertentes ideológicas: trotskistas, leninistas, stalinistas, maoístas, castristas, reformistas e até outras. Nasceu um partido que não era nem revolucionário nem comunista nem socialista e nem mesmo social-democrata, mas apenas dos trabalhadores, sem ideologia, e que ao mesmo tempo abrigava (quase) todas as ideologias dentro dele, sob a liderança do Lula. Um partido com a cara do Lula.

É curioso notar que os que ficaram de fora, aparentemente eram os divisionistas, os partidos que tinham dono: o PDT, porque estava subordinado ao Brizola; o PCB, porque estava subordinado à União Soviética; o PCdoB, porque estava subordinado à China. E o PSDB, porque parte da esquerda achava o PT “radical” demais, com todos aqueles pretensos revolucionários dentro dele. O PT seria o partido democrático da esquerda comprometida com os trabalhadores, mas o fato é que se tornou cada vez mais o partido do Lula, distanciando-se de qualquer projeto revolucionário e assumindo variados modelos de governo, conforme o líder local.

Não ter um projeto claro e exequível para o Brasil é outro erro. O PT caracterizou-se não por um programa de governo claro e ou mesmo por algum projeto específico, como o da escola pública em tempo integral que caracterizou o PDT de Brizola e Darci, mas principalmente por sua aproximação com os mais pobres e com a criação de mecanismos de participação desses no governo, o que se traduziu em políticas governamentais mais populares, voltadas para a maioria, para o combate à miséria etc. Nunca teve, porém, um programa claro para o país – e quando Lula finalmente chegou à presidência, preparou antes uma “carta aos brasileiros”, também chamada de “carta aos banqueiros”, na qual anunciou que manteria a política econômica dos governos FHC, que tinham começado com o Plano Real.

Foi a trajetória que seguimos, foi o que conseguimos ser, porque, embora eu nunca tenha sido petista, a história do PT é a história da minha geração e o Lula é o grande líder brasileiro da minha geração. Na nossa juventude, amávamos tanto a revolução (nome de um filme da época), mas envelhecemos abandonando esse ideia e assumindo outras menos radicais e mais viáveis, mas principalmente nos tornando seguidores de um líder que personificava todas as qualidades que idealizávamos – o proletário revolucionário – e que na prática nunca foi revolucionário e se converteu num bom político capitalista liberal, acima das classes, conciliador, democrático. Nossa trajetória e nosso destino ficaram amarrados nele, à sua ascensão e à sua queda.

(Crédito da foto: Ricardo Stuckert / PR. Lula deixa o Palácio do Planalto como presidente pela última vez, 31/12/10.)

 

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